Nesta entrevista o professor Ruy Sardinha Lopes compartilha sua experiência como participante do Programa Ano Sabático realizado pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo. Conta um pouco de sua trajetória como pesquisador, destacando seu interesse em tecnologia, inovação e as implicações sociais desse campo.
Ele discute ainda o papel das universidades na promoção da inovação e sua influência na formulação de políticas públicas. A conversa oferece insights valiosos sobre aglomerados urbanos criativos, parques tecnológicos, inclusão e transformações estruturais.
Juliana: O que o IEA representa para o senhor e como ele se insere na sua trajetória enquanto pesquisador?
Rui: Eu tive toda a minha formação universitária ligada à USP. Eu fiz graduação, mestrado e doutorado na USP de São Paulo. Depois trabalhei em outros lugares até vir trabalhar aqui na USP de São Carlos como professor. Desde a minha a graduação em Filosofia na FFLCH, tive contato com o IEA. Então, eu sabia da importância do Instituto, tive a oportunidade de ir a alguns dos eventos promovidos pelo instituto.
O IEA, para mim, sempre foi uma referência de um centro de estudos interdisciplinares, de trocas de saberes.
Quando eu entrei em São Carlos como professor (já estou aqui há 20 anos), andando pelo campus, vi o prédio do IEA e acabei vindo conhecer as instalações ainda antes da reforma. Depois, como o Renato Anelli, que é professor do IAU [Instituto de Arquitetura e Urbanismo], foi coordenador do IEA, acabei me aproximando um pouco desse polo.
Alguns anos depois, em 2016, eu fiz uma primeira proposta para o Programa Ano Sabático, mas acabei não sendo aprovado na época.
Nessa segunda edição do programa, na qual fui aprovado, minha intenção já era desenvolver o projeto aqui na cidade, com o objetivo também de tornar o Polo São Carlos mais orgânico e ativo.
Juliana: Quais eram as suas expectativas quando o senhor se inscreveu no Programa Ano Sabático?
Ruy: Uma motivação é a possibilidade de você ter um tempo de pesquisa. Pode parecer um contrassenso, porque, afinal de contas, estamos numa universidade de pesquisa, o nosso contrato de trabalho prevê toda uma dedicação para pesquisa. Mas as atividades didáticas, de gestão e burocráticas acabam tomando uma grande parte do nosso tempo. E mesmo que você desenvolva pesquisas, você está sempre sendo demandado por essas outras atividades.
Sem contar que, muitas vezes, as pesquisas acontecem nos seus próprios laboratórios, nos seus próprios institutos. Então, você acaba ficando muito isolado desse contato interdisciplinar. Dessa forma, uma outra expectativa era a de ter um espaço de diálogo interdisciplinar com pesquisadores de outras áreas.
Juliana: E como foi o ano de 2024? Das expectativas que existiam, o que de fato foi concretizado?
Ruy: Uma coisa é você pensar, elaborar, conceber o projeto, uma trajetória do ponto de vista externo. A outra coisa é quando você, de fato, está dentro de uma estrutura e vê como isso funciona.
Com relação ao desenvolvimento da pesquisa, eu considero que o IEA de São Carlos ter concedido um espaço em que eu pudesse trabalhar foi fundamental. Porque no instituto que eu trabalho as demandas são maiores, mesmo que eu esteja afastado oficialmente. Então, o fato de eu ter uma sala exclusiva para isso foi muito importante. Agora, a gente passa por outros imprevistos ou mudanças de rota.
Algumas hipóteses ou questões levantadas no projeto de pesquisa como, por exemplo, um engajamento maior com os espaços de pesquisa do interior, acabaram não se consolidando. Isso fez com que a pesquisa ganhasse outros contornos, que eu considero também importantes.
Juliana: O senhor mencionou como expectativa o diálogo entre outras disciplinas. Entre vocês pesquisadores sabáticos, houve essa troca?
Ruy: No início a intenção era essa, que tivéssemos encontros entre os seis pesquisadores sabáticos daquele ano, a criação de um certo circuito. Mas isso acabou não acontecendo. Também a minha ideia era fazer a pesquisa aqui em São Carlos, tendo um contato maior com São Paulo. Só que eu tive questões de saúde esse ano que me obrigavam a permanecer mais em São Carlos.
De qualquer maneira, eu penso que deveria haver um desenho institucional do programa que facilitasse esses trânsitos, eventos para difundir essas pesquisas que estão sendo elaboradas.
Juliana: A respeito da sua pesquisa, como o tema escolhido se insere na sua trajetória?
Ruy: Eu venho trabalhando o tema ligado à tecnologia, informação, conhecimento e espacialidades desde o mestrado, mas com uma ênfase maior a partir da pesquisa de doutorado, que foi no início dos anos 2000. Então, essa questão estava sempre presente.
Quando ingressei no curso de arquitetura como professor, eu continuei mantendo toda uma relação com pesquisadores da área da economia política, da cultura, da comunicação e da informação, participando de fóruns internacionais e sendo presidente de associações científicas.
No departamento de arquitetura e no grupo de pesquisa que eu coordeno, estou sempre pensando nessas áreas: das tecnologias, do impacto econômico e das relações sociais e culturais.
Quando eu elaborei a proposta para o IEA de pensar sobre os espaços aglomerados de inovação, isso surge de um estudo anterior que eu comecei a fazer na arquitetura, naquilo que eu chamava de espaços e aglomerados de cultura e inovação.
Anteriormente, eu estava muito ligado à questão da economia criativa. De como a cultura é acionada a partir desses outros espaços e também como, por exemplo, uma série de espaços como fábricas abandonadas e subutilizadas, patrimônios industriais, patrimônios históricos, viram espaços de cultura e de inovação (FabLabs, o Cowork e por aí vai).
Na sequência, eu faço um projeto de pesquisa dentro do IEA para estudar esses espaços e isso se desdobra numa disciplina de pós-graduação.
Estudando um pouco a taxonomias desses espaços, identificava pelo menos duas cadeias produtivas. Uma ligada à cultura e às artes e a outra ligada à inovação e tecnologia.
A partir dessas duas cadeias produtivas que eu desdobro, faço o projeto do IEA pegando especificamente essa questão da inovação e da tecnologia. Esta escolha está relacionada a uma característica do campus USP São Carlos, que é um campus formado por unidades de ciência e tecnologia, em uma uma cidade onde se fala bastante sobre os ecossistemas de inovação.
Ao mesmo tempo, há cursos aqui no próprio campus como a arquitetura que, de alguma maneira, também pensam essas questões.
Portanto, minha ideia era justamente tentar trazer esses campos disciplinados e posicioná-los para um diálogo.
Juliana: Como podemos definir esses ambientes e aglomerados urbanos criativos?
Ruy: Quando vamos definir um tema, fazemos a tentativa de várias denominações. Então, eu quis utilizar uma denominação que, primeiro, fugisse de alguns termos que estavam sendo utilizados e muito direcionados e que fosse um pouco mais amplo. Uma característica importante de muitos desses espaços é uma espécie de hibridização entre campos disciplinares. Ou seja, você tem um espaço que é de trabalho e, ao mesmo tempo, um espaço de formação, que conjuga entretenimento ou uma atividade cultural.
Ou seja, são espaços que têm como característica um certo hibridismo. Uma vez, a gente escreveu um artigo chamando isso de campo fusional, que é justamente essa ideia de transdisciplinaridade que esses espaços acolhem.
Então, não é um espaço exclusivo de ciência ou de tecnologias voltadas para o mundo empresarial, mas que faz um pouco dessas interfaces. Eu penso que o que caracteriza esses espaços é uma nova concepção do mundo do trabalho que pensa esses espaços como espaços de diálogos, espaços de atração de interesses diversos. E que, a partir dessa aproximação, pode proporcionar novas ideias, novos contatos, novas inter-relações.
Juliana: O parque tecnológico seria um recorte disso, uma especialização?
Ruy: Desde a época da industrialização se tornou convencional falar de um regime fordista. Esta era uma época dominada pelo capitalismo industrial e que vai durar com força até meados da década de 1970.
Depois a gente teve uma crise desse modo de produção. E a tentativa de solucionar a crise foi o que alguns chamam de pós-fordismo ou acumulação flexível.
Pelo menos desde a época de uma economia industrial forte, as pessoas acabaram percebendo os benefícios de uma aglomeração espacial. Porque você pode compartilhar da mesma infraestrutura e de uma série de serviços. Inclusive, se desenvolve todo um estudo, tanto no campo da geografia quanto no campo da economia, falando dessa economia da aglomeração.
Quando vem a crise da industrialização, a economia se reconfigura e a dimensão das tecnologias ganha força, surgindo uma discussão neste sentido. O mundo estava começando a se “globalizar”, a comunicação à distância começa a se tornar uma realidade. Então, muitos começam a dizer que é o fim das aglomerações.
Só que as pessoas perceberam que, apesar dessas facilidades de comunicação à distância, a proximidade continuava sendo um elemento importante. Ou seja, atrair empresas para o mesmo espaço continuava tendo vantagens adicionais.
Só que agora, em vez das pessoas pensarem naquela lógica das grandes indústrias, dos parques ou dos distritos industriais, eles começam a testar modelos de empresas de tecnologia. Então, essa é a ideia da formação de parques tecnológicos: lugares onde empresas de tecnologia possam, de alguma maneira, usufruir dos recursos trazidos por uma certa proximidade.
Estou falando daquilo que é de um discurso usual, oficial, que vai enaltecer as vantagens da aglomeração. Eles começam a dizer, por exemplo, que existe um compartilhamento de saberes, uma troca de informação relacionada a essa proximidade física.
O que os meus estudos mostram é que esse é um discurso que precisa ser incorporado com uma certa ressalva. Embora sejam importantes esses espaços e essas trocas, quando a gente pensa na lógica do mundo empresarial, a gente vê que não são espaços tão amigáveis assim, ou não são todas e quaisquer informações que podem ser trocadas, porque existem informações sensíveis.
Então, ao mesmo tempo em que esses parques são um espaço de geração de novas tecnologias e novos conhecimentos, eles também devem ser vistos como um espaço onde os agentes estão em disputa, pensando nos seus interesses particulares.
Juliana: O senhor comenta que estamos passando por um reposicionamento das lógicas culturais e de inovação dentro da atual fase capitalista. E que a denominação do que se caracteriza como criativo se insere nesse reposicionamento. Poderia falar um pouco sobre essa transformação, do que é considerado criativo hoje e o que o distingue de inovação?
Ruy: Eu entendo os conceitos como campos em disputa. São, portanto, campos políticos onde um conjunto de interesses estão colocados. Criativo e criatividade são termos que, usualmente, são utilizados para o campo das artes e das humanidades. Então, o artista era visto como uma pessoa criativa. E a criatividade, usualmente falando, era algo que tinha a ver, primeiro, com uma certa habilidade do homem. Diante de determinadas situações, ele vai encontrar respostas, soluções para lidar com aquele conjunto de problemas. Portanto, ele usa essa faculdade para, de alguma maneira, resolver essas questões.
Criatividade é uma habilidade humana que está presente em todos os momentos da vida. Um médico num evento cirúrgico, por exemplo, diante de uma intercorrência, muitas vezes, precisa utilizar essa capacidade de improvisar ou de solucionar um problema que não estava previsto. Um engenheiro, um físico, qualquer ser humano em qualquer situação.
Quando a gente vê essa tradição do campo das artes e da cultura, a gente utiliza uma espécie de pensamento crítico em relação, por exemplo, às determinações do mundo empresarial, da economia.
É curioso observar como é que um termo que vem de um outro universo disciplinar e político é incorporado pelo mundo da gestão.
Existem dois autores, Luc Boltanski e Ève Chiapello, que na década de 1990 escreveram um livro muito importante chamado “O Novo Espírito do Capitalismo”. Eles fizeram todo um estudo da literatura de administração de empresas e começaram a observar como é que no mundo da administração a ideia de criatividade, flexibilidade e liberdade era incorporada para benefício do mundo empresarial.
Eles vão dizer que o Novo Espírito do Capitalismo incorporou as críticas que vinham do mundo das artes e transformou essas críticas em algo que servia para impulsionar o próprio sistema.
É curioso ouvir, por exemplo, esse discurso da criatividade, da liberdade, da ausência de espaços físicos e de hierarquias, de você ter um espaço que você possa relaxar e que isso vai aumentar a produtividade. Se você descontextualizar isso, vai parecer que está ouvindo discursos de artistas da década de 60.
Este é o trânsito que eu estava apontando, o quanto uma área que criticava o discurso é incorporada agora em benefício do próprio discurso. Isso significa que começa a haver uma espécie de borramento entre campos que eram muito distintos, a ponto de você não saber direito o que é crítica, o que não é; o que vem desse lado, o que não vem.
As coisas começam a se misturar, os poros começam a se abrir mais. É um pouco essa mudança que eu estava apontando.
Juliana: Quando você distingue esses dois subcampos no seu artigo, é mencionado que o que é criativo está ligado ao artístico, ao cultural, e, portanto, os investimentos são públicos. Já no subcampo da inovação haveria investimentos tanto públicos quanto privados, porque existe o discurso de que inovação pode gerar empreendimentos, empresas e, de alguma maneira, dar um retorno. Então, se a gente pensar a longo prazo, essa distinção baseada nesses princípios econômicos tende a gerar cada vez mais desigualdade?
Ruy: A gente tem que olhar para essas questões também com cuidado.
A manutenção desses espaços tem um sistema de gestão e manutenção diferente. Aqueles espaços mais voltados para a cultura tem um pouco essa tradição, ou seja, dos financiamentos públicos, das leis de incentivo. É como se esses equipamentos não se autossustentassem.
Aqueles que se autossustentam, que geram muitos lucros, são aqueles ligados a uma indústria cultural poderosíssima. Basta a gente ver a diferença entre as megaproduções cinematográficas – que têm orçamentos bilionários e que, por ter uma estrutura de divulgação e de produção também globalizada, conseguem retornos mundializados – e produções independentes que, muitas vezes, não conseguem nem se inserirem em espaços de sala de exibição.
Então, dentro desses próprios ecossistemas existem diferenças importantes. Mesmo dentro do âmbito da cultura e das tecnologias, existem diferenças que são importantes considerar.
Por outro lado, a gente também tem que tomar um certo cuidado de não rotular todas as atividades como se fossem perniciosas ou benéficas. Por exemplo, não é porque é tecnológico que leva à desigualdade, ou não é porque é artístico ou cultural que leva a uma certa equalização. A gente tem que olhar um pouco caso a caso, discriminar um pouco essas questões.
O importante seria pensar em quais são as políticas e concepções que contribuem para um maior bem-estar social ou que, de alguma maneira, podem contribuir para uma maior equalização das diferenças.
A grande questão é: isso não está embutido no nível da tecnologia per se. Ou seja, se você não politizar essas questões, o desenvolvimento tecnológico é o desenvolvimento tecnológico. Agora, como eu utilizo esse desenvolvimento tecnológico? Que tipo de tecnologia eu incentivo, ou não? E quais são as possibilidades emancipatórias ou discriminatórias daquilo? Essas são decisões políticas.
É por isso que eu penso que essa discussão deve ser transdisciplinar. Porque é o campo da sociologia e das humanidades, como um todo, que tem maior instrumental para enxergar algumas dessas dimensões que muitas vezes outros campos não têm. Se eles permanecerem isolados, sem grandes comunicações, essas dimensões são perdidas.
Juliana: Em relação a esses ecossistemas de inovação que o senhor cita, quais seriam os principais atores desses ecossistemas? E quais são aqueles que ainda não são considerados, mas que se fossem, poderiam contribuir para a formação de um ecossistema mais criativo e equitativo?
Ruy: Eu havia comentado um pouco antes uma certa dificuldade com o termo ecossistema. E por que isso? No estudo da economia e das tecnologias predomina uma corrente que a gente chama de economia evolucionária. Isso significa que o conhecimento acumulado vai gerando determinados produtos, esses produtos vão acumulando saberes e, então, evoluindo. Dentro dessa visão evolucionária, as metáforas biológicas começaram a surgir e a ganhar força.
Quando eu falo de um ecossistema, estou pensando em uma estrutura que mantenha um certo equilíbrio. É como se eu tivesse vários elementos que vão estabelecendo vasos comunicantes que chegariam a um certo equilíbrio.
Essa visão de vasos comunicantes ou de agentes que chegam a um certo equilíbrio, e que representam um estágio evolucionário, para mim, não é muito adequada. Talvez fosse mais produtivo se falar em sistemas complexos do que em ecossistemas ou utilizar o conceito de campo trazido pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu.
Quando ele fala de campo, sugere uma certa especificidade. O campo das artes, o campo da ciência, o campo da religião. Existe um conjunto de questões que delimitam esse campo e que tornam esse campo distinto de outros.
Dessa forma, o campo das artes é distinto do campo da ciência por algumas características específicas. No entanto, eu poderia identificar o campo como um campo de disputas em que os agentes estão compartilhando algumas coisas, ou seja, é ao mesmo tempo um campo político.
Disputa pelo quê? Por poder, por hegemonia, por prestígio…
O que eu estou querendo dizer é que se a gente pensar o ecossistema tecnológico como um campo em disputa, como um campo de diversos interesses, a gestão desses espaços e agentes pode ser vista como a gestão de conflitos e, portanto, a gente pode trabalhar com a ideia de uma política desses espaços não apenas físicos, mas espaços de sociabilidade, de relações, onde esses interesses estão ora em harmonia ora em desarmonia, ora se reunindo, ora excluindo, numa configuração que não é fixa.
Basta pensarmos na alta tecnologia como campo essencial para a economia contemporânea. Um exemplo recente foi o fato de os Estados Unidos colocarem como condição para o apoio à paz ucraniana a exploração de terras raras no país.
Estou só fazendo um desvio, porque há uma questão interessante aqui. Um tempo atrás o grande interesse das nações era o petróleo. Depois de uma guerra, obrigava-se aquele território a assinar um acordo onde a exploração do petróleo seria feita por grandes empresas como Shell, Texaco…
Hoje em dia, o petróleo do mundo são as terras raras, minerais que existem em alguns lugares e que são fundamentais para todo o desenvolvimento tecnológico, para a internet 5G, esses chips de alta performance, semicondutores.
Ora, o que o Trump faz? Ele chega e coloca isso na mesa e diz: se vocês quiserem que eu apoie qualquer acordo de paz, vocês vão ter que nos dar o direito de explorar essas terras raras.
A pergunta que a gente pode fazer é: quem são os partidários, os beneficiários de todo esse desenvolvimento tecnológico, de toda essa riqueza gerada? Ela, de alguma maneira, está sendo concentrada na mão dos donos do poder e do dinheiro ou está havendo uma certa repartição?
No caso da Ucrânia, a exploração de terras raras por determinadas empresas no solo ucraniano vai trazer benefícios concretos para esse povo ou não? A gente pode dizer que vai gerar emprego, vai gerar uma série de externalidades. Então, o que a gente tem que fazer?
Ver concretamente.
Qual é a proporção desse benefício? Quais são as moedas dessa grande troca?
Vamos voltar agora a nesses espaços onde empresas de alta tecnologia atuam nos países periféricos em que a desigualdade social ainda é muito grande. A pergunta que se faz é um pouco essa. Quem são os beneficiários desse desenvolvimento? Para quem isso está servindo? Como, de alguma maneira, a gente pode ter uma certa equalização ou distribuição um pouco melhor desses dividendos?
Você me perguntou como isso pode ser possível.
Juliana: Eu perguntei como pode ser possível e quais são os atores, porque a terminologia utilizada no seu artigo foi essa. Quais atores estão sendo excluídos e que se fossem incluídos nesse processo poderiam tornar esse sistema mais equitativo?
Ruy: Na teoria, antigamente era um triângulo – empresa, sociedade e universidade. Depois esses atores vão aumentando. É importante porque você começa a nomear agentes que, em um determinado momento, não eram tão importantes assim. Ao serem nomeados, começam a ser.
A universidade é um agente importante, porque produz conhecimento. O conhecimento é a base da geração desses novos produtos. As empresas porque são aquelas que transformam esse conhecimento em produto e o coloca no mercado.
Se reconhece também o papel do Estado como um agente importante.
Mas, aqui há uma discussão que vem da área das humanidades. Eu posso falar de múltiplos agentes, mas se eu tenho um conceito de inovação que é um conceito mais empresarial, ou seja, que visa gerar lucros e esses lucros são apropriados pelas empresas, eu acabo subordinando esses atores a uma determinada visão.
E muitos vão dizer, por outro lado, existe uma série de outras demandas que não vêm do mundo empresarial e sim do mundo social e que é fundamental serem consideradas.
Então, por que eu tenho uma política pública de incremento de inovação? O que é política pública?
Agora há o Programa Brasil Nova Indústria. Esses planos de desenvolvimento industrial, tecnológico e de inovação atualmente vão colocar a questão ambiental como relevante, algo que até pouco tempo atrás não era considerado.
O que pode parecer um mero detalhe ou discurso retórico (e muitas vezes é um mero discurso retórico) pode causar movimentos que propiciam determinadas ações.
Voltamos à ideia de um campo de disputas de interesses.
Se eu tenho verbas que estão destinadas a um determinado setor e neste programa é mencionado o meio ambiente, esse desenho pode abrir espaço para que outros atores disputem esses recursos, disputem essas tecnologias e por aí vai.
Isso abre espaço para a gente pensar, por exemplo, em tecnologias que aprimorem o sistema público de saúde ou tecnologias de desenvolvimento de produtos que façam frente a determinadas tecnologias de domínios de indústria.
Então, ter políticas públicas e governos preocupados com essas questões e entendendo que o desenvolvimento tecnológico é um campo que pode gerar um conjunto de benefícios sociais é importante.
Se a gente fizer um estudo empírico dos parques tecnológicos, dos espaços e ambientes de inovação universitários ou não universitários, ir a fóruns onde essas questões são discutidas, a gente verá uma presença muito pequena dos profissionais, pesquisadores e pensadores das áreas de humanidade. Pessoas das áreas de humanidades precisam reivindicar esse espaço como sendo deles.
Eu estava num debate outro dia na Embrapa, que é uma empresa fabulosa. Um pesquisador estava falando do desenvolvimento de uma tecnologia muito barata que propiciava um aumento da produtividade do leite e isso propiciava que pequenos produtores pudessem produzir um produto de maior qualidade. Para isso, ele tinha equipes de pesquisadores em contato com as comunidades locais para conhecer mais dessas realidades. Essas equipes transdisciplinares podiam, de alguma maneira, ter esse tipo de diálogo.
Eu ficava ouvindo aquilo e pensando no quanto a etnografia, a antropologia e outras áreas têm todo um instrumental teórico e metodológico de anos e anos que foram construídos para ir a estas populações e obter um conjunto de informações. E mais ainda, têm toda uma discussão que pensa essas formas de conhecimento de baixo para cima.
Não seria algo útil para um desenvolvimento de um produto de uma empresa como a Embrapa? Então, é isso que eu falo.
Na verdade, muitas vezes você tem um discurso da transdisciplinaridade, mas um cotidiano que acaba não propiciando, de fato, essas trocas, essas inter-relações.
Juliana: No seu evento é mencionado o termo ecossistemas universitários. A universidade está mais para um ecossistema ou para um campo de disputa?
Ruy: Se você pensar a universidade como um todo, ela é esse campo de disputa das diversas áreas, dos diversos agentes. Basta a gente ir em um conselho universitário, para você ver o quanto isso é um campo de disputa. Ou mesmo nos órgãos internos.
Enquanto campo de disputa, há sim toda uma discussão sobre as políticas universitárias e mesmo as políticas de inovação. Então, não dá para a gente isentar o meio universitário dessas questões.
Algumas universidades começam, a partir de determinado momento, a investir mais nessa questão da inovação, a definir políticas de inovação ainda, do meu ponto de vista, muito centradas na questão da inovação tecnológica.
De novo, falando da universidade empreendedora, das parcerias da universidade com as empresas. Não só tecnológicas, mas também empresariais ou mercantis, como uma área de desenvolvimento. E, de novo, eu acho que é uma área importante. O desenvolvimento econômico, o desenvolvimento de empresas que possam competir e, principalmente, a inserção de empresas brasileiras que adquiram esse capital, que possam ter um posicionamento numa geopolítica ou numa geoeconomia, é fundamental para o desenvolvimento do país, das regiões, etc.
Então, não se trata de não reconhecer a importância disso.
O que me parece é que, dentro desse ecossistema universitário, a universidade é um espaço apropriado onde essas questões de busca por uma igualdade dos rumos dessa economia e da proposição de políticas de inovação podem ser discutidas. Ela é o espaço ideal no qual se possa discutir quais são, dentro de uma política de desenvolvimento nacional, as áreas prioritárias e que tipo de empresas devem, ou não, serem impulsionadas com o uso de recurso público.
Porque, se você utilizar recurso público para desenvolver tecnologia para a Petrobras, por exemplo, é uma coisa. Você utilizar recurso público para desenvolver tecnologia para a Meta é outra coisa, pois se trata de recurso público nacional.
Um dos argumentos utilizados é o da parceria, ou seja, de que as empresas vão patrocinar pesquisas, investir em equipamentos ou em laboratórios.
Que tipo de acordo se faz para que os resultados disso voltem para a própria nação? Para o próprio país, ou para aquela comunidade que está desenvolvendo essas questões?
Esse tipo de discussão ultrapassa o escopo do pesquisador. Alguém que esteja desenvolvendo um software ou um algoritmo está preocupado frequentemente com o específico. Ele não tem, muitas vezes, essa dimensão macro das questões envolvidas.
Por isso, a universidade é o local propício para esta decisão, já que ela reúne um conjunto de profissionais de outras áreas que podem pensar nestas questões, influenciar nas grandes decisões nacionais e estaduais. O que é diferente de um parque tecnológico privado ou do centro de pesquisa e desenvolvimento de uma empresa que está preocupado única e exclusivamente com os objetivos e benefícios daquela instituição.
Juliana: Dentro dessas questões colocadas sobre o papel da universidade, eu gostaria que o senhor falasse a respeito de dois projetos da USP citados em sua pesquisa. Um é o Programa Eixos Temáticos e o outro é a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento. Qual é a importância deles? O que eles podem impactar no futuro no que diz respeito à inovação?
Ruy: Como um dos resultados da pesquisa, eu escrevi um artigo que pensa justamente os conceitos ou as políticas de inovação da Universidade de São Paulo. Eu tomei esses projetos como exemplo de inovação, porque desenvolvo esse argumento de um conceito de inovação que não seja estritamente inovação tecnológica, mas a ideia de inovação social.
Isso significa pensar no relacionamento, desenvolvimento de questões e de tecnologias que atendam a demandas sociais e que, portanto, estejam alinhadas à missão da Universidade, que é a de formar cidadãos e de contribuir para o bem-estar da sociedade.
E eu peguei esse programa, Eixos Temáticos, como exemplo de uma contribuição de determinados membros da universidade para a sociedade, contrariando o discurso de que a universidade não dialoga com seu entorno.
Aliás, no caso da Universidade de São Paulo, essa é uma falácia ao longo de toda a sua história, motivada por uma série de ataques à própria democracia.
A USP criou um programa que era o USP Pensa Brasil em que reuniu um conjunto de pensadores pertencentes ao quadro da universidade para discutir determinados temas que pudessem influenciar na formulação de novas políticas públicas. Para isso, foram encontrados 11 eixos temáticos.
Como resultado se gerou uma publicação com diretrizes e recomendações que está disponível no banco de livros aberto da USP.
O objetivo dessa publicação era que ela fosse entregue aos municípios, governos de estado e governos nacionais.
Independente dos resultados do programa, estou falando que em um determinado momento profissionais da universidade foram instados a pensar questões estratégicas do Brasil e formular propostas de políticas públicas. Isso foi uma inovação no sentido daquilo que estamos chamando de uma pesquisa orientada por missões.
Parece-me que a Universidade de São Paulo poderia organizar algo semelhante em relação à inovação, um USP Pensa Inovação, reunindo profissionais, pensadores, pesquisadores de diversas áreas que pensassem essas questões e que pudessem, a partir de alguns eixos, fazerem proposições de políticas de inovação e de desenvolvimento tecnológico para a sociedade.
O Ministério da Ciência e Tecnologia faz isso, mas eu acho que a USP, pela sua importância e capacidade de reunir no seu corpo uma diversidade de pesquisadores, poderia ser uma contribuição importante, pois pensaria a inovação nas suas diversas dimensões.
Desse foro poderiam surgir diretrizes não só para a própria instituição, mas para outras universidades.
Outro exemplo que eu coloquei foi da Pró-reitoria de Inclusão e Pertencimento. Esta é uma questão de longo prazo, entretanto, cada vez mais, a sociedade vem se articulando para reivindicar políticas neste sentido, exigindo participação de segmentos da sociedade que estavam afastados das políticas públicas e do ambiente universitário.
A gente sabe o quanto a Universidade de São Paulo ao longo dos seus 90 anos foi e continua sendo uma universidade conservadora nesse sentido, pois essas políticas demoraram a chegar aqui se a gente comparar com universidades federais e com outras universidades estaduais. Existe uma lentidão em relação a essas questões.
Mas, a partir do momento que a universidade abre estes espaços (ou tem esses espaços abertos por uma exigência social), se explicita uma série de questões e conflitos que estavam ali presentes e que, muitas vezes, não eram equalizados de uma maneira mais institucional.
Portanto, dar institucionalidade para essas questões que sempre atravessaram a Universidade de São Paulo está fazendo com que se repense a estrutura de ensino, as condições de ensino e aprendizado, as relações cotidianas em sala de aula e assim por diante.
Não é simplesmente uma abertura de mais espaço, não é simplesmente aumentar a quantidade de cotistas ou o escopo das vagas destinadas a determinados segmentos. É a estrutura de ensino não pode ser mais a mesma. É um momento muito importante da sociedade, porque nos faz repensar relações antes invisibilizadas.
Se você pegar, por exemplo, os casos de déficits de atenção e os diversos espectros neurodivergentes… Cada vez mais, a universidade está observando uma realidade que já estava presente durante um tempo enorme. A diferença é que agora isso passa a ser alvo de atenção.
Pessoas que tem uma dificuldade grande em sociabilização e que, portanto, não conseguem fazer trabalhos em grupo sempre existiram. No entanto, isso nunca foi nomeado ou debatido.
A partir do momento em que isso é nomeado e, mais do que nomeado, institucionalizado, você pode incluir. Você pode olhar para aquilo não como uma resistência, não como problema, mas como uma característica da diversidade. E o trabalho do docente é um trabalho de lidar com essa diversidade, com esse conjunto enorme de indivíduos que estão colocados ali na frente dele.
Por fim, o que eu quero dizer com esses programas é que a partir do momento em que a universidade se abre para esse conjunto de questões, as estruturas estabelecidas precisam se renovar, se reestruturar, se repensar. E, portanto, uma inovação organizacional, muitas vezes, é mais importante do que as inovações concretas. Ela se faz presente e necessária.
Uma inovação organizacional pode gerar impactos, por exemplo, nos objetos de pesquisa, nas temáticas, nas metodologias. Pode, portanto, gerar novos produtos, novos conhecimentos.
Vou pontuar aqui um exemplo muito particular. Sou pesquisador do campo das artes, da história da arte. A partir de alguns anos, alguns alunos me demandaram temas novos de pesquisas: arte indígena, produção artística LGBTQIA+, viradas raciais, etc. Isso fez com que eu abrisse um campo de investigação para esses fenômenos pré-sistemáticos. E, portanto, isso requisita uma nova bibliografia, uma nova metodologia, a construção de novos olhares, de novos conhecimentos e assim por diante.
Eu tenho uma demanda que é colocada a partir de um ponto de vista de um acesso mais equalizado, mais equânime, ou da presença de uma diversidade maior do público universitário. E isso tem um impacto direto ou indireto na produção do conhecimento, naquilo que se pesquisava e naquilo que se passa a pesquisar, nas metodologias que eram próprias para determinados assuntos, mas que não são para outros, e que, portanto, leva a um desenvolvimento tecnológico, a novas construções teóricas. Isso é inovação.
É uma inovação que faz com que o conhecimento produzido no Brasil e desde o Brasil, por exemplo, possa trazer uma contribuição importante para aquilo que está sendo discutido no resto do mundo.
[Por Juliana Bernardo]